O trabalho sujo de Kissinger foi muito além do Sudeste Asiático e da América do Sul. Juntamente com Nixon, apoiou o esforço brutal do governo militar do antigo Paquistão Ocidental para suprimir os nacionalistas bengalis no antigo Paquistão Oriental, onde hoje é o Bangladesh. Um estudo recente estimou o número de mortos nesse conflito em 269 mil pessoas, com milhões de refugiados empurrados para a vizinha Índia. Kissinger também deu luz verde à invasão de Timor-Leste pelo ditador indonésio Suharto em 1975, desencadeando um conflito que iria, entre 1976 e 1980, matar pelo menos 100.000 pessoas numa população total de aproximadamente 650.000.
Esta é apenas uma amostra das actividades de Kissinger, que continuariam nas décadas seguintes à sua saída do governo, quando trabalhou como consultor privado e guru, de alguma forma, para uma ampla variedade de líderes políticos e empresariais. “Nenhum antigo conselheiro de segurança nacional ou secretário de Estado exerceu tanta influência depois de deixar o cargo como Kissinger”, observa o historiador Greg Grandin no seu obituário para The Nation. Essa influência explica por que, como observa Spencer Ackerman na Rolling Stone, Kissinger “morreu como celebridade”, um membro valorizado e festejado do establishment americano.
A morte de Kissinger ocorre num momento de crescente ansiedade quanto ao futuro da democracia americana. Existe um receio real de que Donald Trump, se for concedido um segundo mandato na Casa Branca, desmantele o nosso sistema de autogoverno constitucional em favor de algum tipo de autocracia. Vale a pena, então, pensar não apenas na influência de Kissinger na política externa americana, mas também na sua influência na democracia americana. Isto pode ser resumido no desprezo que ele expressou pela democracia chilena quando observou que não havia razão para os Estados Unidos “aguardarem e deixarem o Chile tornar-se comunista apenas devido à estupidez do seu próprio povo”.
Kissinger, tal como o seu patrono Nixon, não demonstrou nada além de desprezo pela responsabilização, pela opinião pública ou pelo Estado de Direito. Escrevendo para o The Atlantic, o historiador Gary J. Bass observa que Kissinger ignorou completamente uma proibição do Congresso contra o envio de armas para o Paquistão.
Ele ignorou os avisos de assessores da Casa Branca e advogados do Departamento de Estado e do Pentágono de que seria ilegal transferir armas para o Paquistão. Em 1971, com a presença do procurador-geral John Mitchell, Nixon perguntou a Kissinger: “É realmente tão contra a nossa lei?” Kissinger admitiu que sim. Não se preocupando em inventar uma teoria jurídica sobre o poder executivo, Nixon e Kissinger simplesmente seguiram em frente e fizeram-no de qualquer maneira. “Inferno”, disse Nixon, “já fizemos pior”.
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